“Culpa e Graça”, de Paul Tournier (1898-1986)
“O objetivo deste estudo não é trazer uma receita com que secretamente sonhamos, uma receita para viver sem culpa! Mas procuramos analisar corajosamente a nossa condição humana, toda carregada, inexoravelmente, de culpa.”
1ª Parte – Dimensão da Culpa.
Sentimentos de culpa podem ser inseridos nas nossas mentes pelo comportamento dos outros. A diferença fundamental entre cada ser humano – as suas habilidades e capacidades, por exemplo – é capaz de gerar esse tipo de distorção. Afirmações, julgamentos, desprezo, censuras são formas de gerar culpa que, quando reprimida, gera uma resposta violenta. Até mesmo conselhos podem desencadear essa reação. Entre membros da mesma família, cônjuges isso é facilmente identificável.
O medo de sermos julgados é o que nos impede de sermos autênticos, assumindo nossos gostos, opiniões, desejos e convicções – Mt 25.25. Até mesmo debaixo de uma aparente caridade, altruísmo pode-se mascarar uma repugnância ou uma condescendência exagerada em relação a doentes ou enlutados. Isso é natural à medida em que há dentro de cada um de nós uma resistência em aceitar a miséria humana. Nessas situações extremas, é natural a nossa vontade de fechar os olhos, seja essa vontade consciente ou não. Jesus chama a atenção para essa tendência humana em Lc 20.31 e Mt 25.43.
Jó percebeu em seus amigos um profundo espírito de julgamento. Não voltaram as costas, mas tanto falaram, tanto tentaram ajudar que jogaram a culpa em Jó por todos seus problemas.
O autor cita uma outra forma curiosa de culpa, que serve, de alguma forma como estimulante: a procrastinação, o constante adiamento de uma tarefa importante. Ao perceber o pouco tempo restante para executá-la, a pessoa se lança com mais afinco na busca da realização. Ao verificar, posteriormente, que o resultado foi menor do que poderia ter sido, consola-se e desculpa-se consigo mesmo lembrando o pouco tempo dedicado à tarefa. A outros, no entanto, essa procrastinação agrava a cada instante a sua culpa, impedindo-o mesmo de começar o trabalho. Vale lembrar: o tempo pertence a Deus e somos seus mordomos também na administração desse precioso presente.
Fraudes inofensivas demonstram uma tentativa, mesmo que inconsciente, de nos acostumarmos com a culpa. Ao lembrarmos que as conseqüências de um determinado ato ilegal são pequenos, forçamo-nos a enfraquecer nosso conceito de “bem” e de “mal”.
O autor questiona: quanto de nossas decisões, portanto, são fruto de nossas livres decisões, de nossa plena consciência do que é bom, justo e correto? Quantas decisões tomamos estando presos por nossos sentimentos de culpa?
“Eis aí o grande paradoxo que sempre encontramos em toda a Bíblia: o caminho doloroso da humilhação e da culpa, com todas as angústias e todas revoltas contra Deus que elas suscitam! E precisamente o caminho que desemboca no caminho real da graça. Deus ama os que, em lugar de disfarçar o problema, o enfrentam até o confronto e a resistência.”
Segundo o autor, a culpa também aflige a quem tem boas condições financeiras, quem recebe um privilégio, quem tem trabalho, quem tem saúde, quem tem uma profissão, e até mesmo a quem tem fé. O fato de outros não possuírem essas coisas traz um sentimento contraditório. É normal, ainda, que nos consolemos com a idéia que não podemos ser responsáveis pelo mundo inteiro. Mas ao mesmo tempo, surge a dúvida: será que o mundo inteiro não sofre por causa da suave negação de muitas pessoas da sua própria responsabilidade? Será que essa “cumplicidade universal” não aprofunda, agrava ou prolonga o problema? Então, nesse caso temos, segundo o autor, duas possibilidades de culpa: a de nos responsabilizarmos pelo mal no mundo ou a de não o fazermos.
A Escritura registra exemplos de líderes que se sentiram responsáveis pelo sofrimento do povo (2Sm 24.17, 2Co 11.29) ou com o mal que outros cometem (2Pe 2.8). Ainda, há o exemplo de Ezequiel, que se sentia sentinela responsável pelos outros (Ez 3.16-21, Ez 33.1-11). Em Jesus, no entanto, que esse seenso de responsabilidade se aprofunda até as últimas consequências (Mt 23.37, Mt 9.36, Lc 15.4 Jo 15.4), apesarr de Jesus se inocente (Is 53.5-12).
“Assim, a vida espiritual e o ministério espiritual, longe de tornar mais leve o fardo da culpa, aumentam ainda mais a carga. Além disso, não se trata, como em Jesus Cristo, do peso da culpa dos outros somente. Quanto mais nos aproximamos de Deus, mais experimentamos a sua graça e quanto mais experimentamos a sua graça, mais descobrimos faltas em nós mesmos que não distinguíamos antes, e mais sofremos por isso.”
Nosso próprio mundo interior revela nossas culpas. O esquecimento, por exemplo, revela “uma falta de acordo consigo mesmo, a existência dessa força interior dissimulada e ativa que sabota nossa ação consciente.