sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Culpa e graça - as principais idéias do livro (1/3)

Culpa e Graça”, de Paul Tournier (1898-1986)


O objetivo deste estudo não é trazer uma receita com que secretamente sonhamos, uma receita para viver sem culpa! Mas procuramos analisar corajosamente a nossa condição humana, toda carregada, inexoravelmente, de culpa.”


1ª Parte – Dimensão da Culpa.


Sentimentos de culpa podem ser inseridos nas nossas mentes pelo comportamento dos outros. A diferença fundamental entre cada ser humano – as suas habilidades e capacidades, por exemplo – é capaz de gerar esse tipo de distorção. Afirmações, julgamentos, desprezo, censuras são formas de gerar culpa que, quando reprimida, gera uma resposta violenta. Até mesmo conselhos podem desencadear essa reação. Entre membros da mesma família, cônjuges isso é facilmente identificável.

O medo de sermos julgados é o que nos impede de sermos autênticos, assumindo nossos gostos, opiniões, desejos e convicções – Mt 25.25. Até mesmo debaixo de uma aparente caridade, altruísmo pode-se mascarar uma repugnância ou uma condescendência exagerada em relação a doentes ou enlutados. Isso é natural à medida em que há dentro de cada um de nós uma resistência em aceitar a miséria humana. Nessas situações extremas, é natural a nossa vontade de fechar os olhos, seja essa vontade consciente ou não. Jesus chama a atenção para essa tendência humana em Lc 20.31 e Mt 25.43.

Jó percebeu em seus amigos um profundo espírito de julgamento. Não voltaram as costas, mas tanto falaram, tanto tentaram ajudar que jogaram a culpa em Jó por todos seus problemas.

O autor cita uma outra forma curiosa de culpa, que serve, de alguma forma como estimulante: a procrastinação, o constante adiamento de uma tarefa importante. Ao perceber o pouco tempo restante para executá-la, a pessoa se lança com mais afinco na busca da realização. Ao verificar, posteriormente, que o resultado foi menor do que poderia ter sido, consola-se e desculpa-se consigo mesmo lembrando o pouco tempo dedicado à tarefa. A outros, no entanto, essa procrastinação agrava a cada instante a sua culpa, impedindo-o mesmo de começar o trabalho. Vale lembrar: o tempo pertence a Deus e somos seus mordomos também na administração desse precioso presente.

Fraudes inofensivas demonstram uma tentativa, mesmo que inconsciente, de nos acostumarmos com a culpa. Ao lembrarmos que as conseqüências de um determinado ato ilegal são pequenos, forçamo-nos a enfraquecer nosso conceito de “bem” e de “mal”.

O autor questiona: quanto de nossas decisões, portanto, são fruto de nossas livres decisões, de nossa plena consciência do que é bom, justo e correto? Quantas decisões tomamos estando presos por nossos sentimentos de culpa?


Eis aí o grande paradoxo que sempre encontramos em toda a Bíblia: o caminho doloroso da humilhação e da culpa, com todas as angústias e todas revoltas contra Deus que elas suscitam! E precisamente o caminho que desemboca no caminho real da graça. Deus ama os que, em lugar de disfarçar o problema, o enfrentam até o confronto e a resistência.”


Segundo o autor, a culpa também aflige a quem tem boas condições financeiras, quem recebe um privilégio, quem tem trabalho, quem tem saúde, quem tem uma profissão, e até mesmo a quem tem fé. O fato de outros não possuírem essas coisas traz um sentimento contraditório. É normal, ainda, que nos consolemos com a idéia que não podemos ser responsáveis pelo mundo inteiro. Mas ao mesmo tempo, surge a dúvida: será que o mundo inteiro não sofre por causa da suave negação de muitas pessoas da sua própria responsabilidade? Será que essa “cumplicidade universal” não aprofunda, agrava ou prolonga o problema? Então, nesse caso temos, segundo o autor, duas possibilidades de culpa: a de nos responsabilizarmos pelo mal no mundo ou a de não o fazermos.

A Escritura registra exemplos de líderes que se sentiram responsáveis pelo sofrimento do povo (2Sm 24.17, 2Co 11.29) ou com o mal que outros cometem (2Pe 2.8). Ainda, há o exemplo de Ezequiel, que se sentia sentinela responsável pelos outros (Ez 3.16-21, Ez 33.1-11). Em Jesus, no entanto, que esse seenso de responsabilidade se aprofunda até as últimas consequências (Mt 23.37, Mt 9.36, Lc 15.4 Jo 15.4), apesarr de Jesus se inocente (Is 53.5-12).


Assim, a vida espiritual e o ministério espiritual, longe de tornar mais leve o fardo da culpa, aumentam ainda mais a carga. Além disso, não se trata, como em Jesus Cristo, do peso da culpa dos outros somente. Quanto mais nos aproximamos de Deus, mais experimentamos a sua graça e quanto mais experimentamos a sua graça, mais descobrimos faltas em nós mesmos que não distinguíamos antes, e mais sofremos por isso.”


Nosso próprio mundo interior revela nossas culpas. O esquecimento, por exemplo, revela “uma falta de acordo consigo mesmo, a existência dessa força interior dissimulada e ativa que sabota nossa ação consciente.


Culpa e Graça - as principais idéias do livro (2/3)

2ª Parte – O Espírito de Julgamento.


O autor divide a culpa em dois grandes grupos: falsas e verdadeiras culpas. As falsas tem origem nos julgamentos que os homens fazem. As verdadeiras, no julgamento que Deus faz. Para diferenciá-la, o relato do episódio em que Jesus fica em Jerusalém sendo instruído por mestres da lei traz um ensinamento importante. Nesse relato, os pais de Jesus retornam aflitos para buscá-lo. Jesus, livre de culpas infantis, responde firmemente a seus pais conforme Lc 2.49. Jesus deveria estar lá, para cumprir o plano de Deus, e isso é algo muito mais sério e importante que alguma censura materna. Mesmo que Jesus seja o motivo da aflição de Maria, Ele não tem culpa disso.

Essas culpas falsas e verdadeiras ficam ainda mais claras quando verificamos os muitos episódios bíblicos que contém comportamento reprovável autorizado por Deus. Há episódios de homicídio, mentira, brigas, violência, vingança. A aprovação de Deus é o que torna uma ação aceitável ou não. Da mesma forma, uma sociedade culturalmente variada e o passar do tempo tornam o julgamento da sociedade algo extremamente volúvel. Não é possível considerar verdadeiras as culpas provocadas pela sugestão social. Assim, entendemos a repreensão de Jesus tanto a Maria, sua mãe (Mt 12.46-50), quanto a Pedro (Mt 16.22-23).


O problema é que todos os homens pretendem, por seus julgamentos, exprimir o julgamento de Deus. É um fenômeno universal. Os homens fazem um monopólio de Deus, mesmo os que não crêem nele, mas especialmente os que querem servi-lo e conduzir homens a Ele. Quando eles julgam a conduta de alguém, todos o faze com um tom peremptório que significa implicitamente que Deus julgaria exatamente como eles. Estão sempre tão fortemente convencidos de seu parecer sobre o bem e o mal que tem a impressão que Deus mesmo se trairia se não partilhasse da opinião deles.”

Jesus disse para que não julgássemos. Normalmente, modificamos essa ordem de Jesus para “não julgueis injustamente”, como quem pretende corrigir a Deus, como se ele estivesse ordenando que nos submetêssemos à injustiça e ao mal. Não nos parece possível não julgar. Mesmo que o façamos com todo cuidado, zelo e boa intenção, facilmente pecamos ao julgar. A Bíblia, revelação divina para nossa salvação, contém a Lei, que muitas vezes parece “gritar” para nós, a fim de que apontemos os erros do mundo inteiro. Ou ainda, imaginamos que faremos um bem ao denunciar o mal, mesmo que não nos peçam para fazê-lo. A verdade é que os erros são reconhecidos pelas pessoas em meditação, recolhidas, ou em um bate-papo informal com alguém que não o julga. A atitude de humildade, de rendição ao outro é eficaz, muito diferente da atitude julgadora. Como Jó, que defendia-se das acusações dos amigos que pretendiam convencê-lo de suas culpas diante de Deus. Em sua defesa contra o que considerava injusto – as acusações – ele não conseguia ouvir a voz de Deus, nem se dava conta da sua obsessão em justificar-se e não em confiar no poder de Deus. Quando cessa o julgamento, conclui o autor, estamos mais próximos do arrependimento e da graça de Deus.


Culpa e Graça - as principais idéias do livro (3/3)

3ª Parte – A Reversão


Cristo recebeu com uma palavra de perdão aqueles a quem o mundo despreza, e que estão conscientes de sua culpa, e falou com severidade àqueles satisfeitos em si mesmos e que reprimem qualquer sentimento de culpa.”


A análise e o exame de cada uma de nossas ações e pensamentos pode facilmente se tornar uma obsessão. O apostolo Paulo fala a respeito em Rm 7.19 e 24, mostrando que a extensão dessas culpas. Se por um lado, essas culpas que conseguimos medir – coisas que fazemos – representam algo que nos afasta e separa dos outros – através de julgamentos – percebemos que somos todos igualmente perdidos e afastados de Deus por natureza. A culpa, que nos separava dos outros por causa dos julgamentos, pode nos mostrar o sentido verdadeiro da ação de Deus em nosso favor: a culpa de todos os homens é inata, e estão todos os seres humanos na mesma calamitosa situação. Essa culpa do “ser”, ao contrário da culpa do “fazer”, é o que pode unir as pessoas, facilitar seu relacionamento, abrir caminhos para o testemunho, fazer uma sociedade mais justa, uma igreja mais receptiva e acolhedora, entre tantas outras coisas.

O moralismo que muitas vezes as igrejas cultivam é exatamente o mesmo que pretendia matar Jesus por curar um homem no sábado. Quem sabe o moralismo, hoje, tenha sido reforçado pela influência de Kant, filósofo alemão do século XVIII, que desenvolveu o conceito de “imperativo categórico”: instituir uma moral autônoma, dando ao homem a capacidade de julgar por si mesmo o bem e o mal, independente da revelação bíblica. Isso reforça a idéia de uma religião de princípios e deveres, tão difundida no nosso meio, e que representa uma grande ameaça não só à salvação eterna das pessoas, mas também à sua saúde mental.


4ª Parte – A Resposta


O que separa o homem da salvação não é a culpa – fazer algo, como querem os moralistas – mas sim a repressão da culpa, a autojustificação, a justiça própria. Em termos de relacionamento interpessoal, é a diferença entre começar a solucionar algum conflito e simplesmente adiar a solução aguardando que o problema seja esquecido, ou tentar transferir a responsabilidade ao outro, como no caso de Adão e Eva.

A pessoa convertida e redimida por Deus não está abrigada do pecado culpa. Talvez seja plano de Deus que tenhamos essa fragilidade e saibamos nos reconhecer frágeis e totalmente dependentes, que nos arrependamos constantemente, que tenhamos ciência da nossa miséria e da santidade e poder de Deus.


Foi para pregar a metanóia, esta transformação radical, o despertar da consciência e da culpa e a erradicação da culpa: a humilhação do orgulhoso e a restauração dos angustiados. Ela já foi de uma vez assegurada a nós e a todos os que crêem. Tudo já foi consumado.”